Sociedade & Ambiente | Um olhar sobre conflitos e tensões ambientais em Portugal

Em Portugal foram profundas as transformações ocorridas na sociedade e na estrutura da economia, após a revolução de abril de 1974 e sobretudo depois da adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, em 1986.

A globalização económica, tida por Giddens como o ápice do capitalismo, a que se viriam a seguir os efeitos próprios induzidos pela revolução tecnológica digital, fizeram emergir inúmeras e inovadoras atividades, muitas consideradas social e ambientalmente discutíveis.

Desde a intensificação da agricultura e pecuária, passando pela produção e transporte de energia elétrica, até à expansão do setor das águas e da gestão de resíduos, se foram, entre outras, atividades fundamentais para a ambicionada prosperidade do país, não deixaram, no entanto, de causar fortes impactos ambientais, não poucas vezes com consequências irreversíveis para o ambiente e “deixando para trás” muitas populações.

A própria história da civilização humana tem sido uma história de transformação da natureza, onde o Homem a tem modificado para desenvolver as suas atividades.

Está cientificamente estabelecido que quer a crise climática quer a crise da biodiversidade estão intimamente ligadas à condição humana.

Basta observarmos a contínua e por vezes descontrolada expansão urbana em zonas costeiras, que fazem desaparecer campos de cultivo, áreas florestais e zonas de vegetação natural, tornando-se já, segundo a Agência Europeia do Ambiente “uma das maiores ameaças à sustentabilidade das zonas costeiras”.

Vivemos hoje num mundo “orientado” e “regulado” basicamente por um modelo de desenvolvimento económico capitalista e consumista, incapaz de chegar a todos, motivo pelo qual as desigualdades – sociais, económicas e ambientais – se acentuam. Por isso, quando preservamos ecossistemas e a biodiversidade, estamos a contribuir para a diminuição da pobreza e das desigualdades.

Com efeito, a expansão económica em grande parte do mundo desequilibrou por completo a relação homem-natureza, ameaçando todos os dias a sustentabilidade do planeta.

A desmaterialização da economia e a ideia do crescimento “infinito”, continua a ser alcançado com recurso ao extrativismo, ou seja, com a exploração de recursos finitos e não renováveis, que se esgotam com o tempo.

A economia consumista tem apenas o céu como limite” (Zygmunt Bauman, 2012)

Note-se que desde Estocolmo (1972), data da primeira Conferência da Organização das Nações Unidas onde pela primeira vez foi avaliado o impacto da atividade humana no planeta, que se procura sensibilizar os países e a população em geral para a forma como agimos e não respeitamos o planeta, a “nossa casa comum” e para a necessidade de serem criadas políticas ambientais fortes e globais.

Convenhamos que na era global e digital que vivemos e numa altura em que a Humanidade cada vez mais toma consciência para a necessidade de um planeta sustentável, mais seguro e mais saudável (a crise da Covid-19 demonstrou bem como a saúde das pessoas e a natureza estão interligadas), a tensão entre desenvolver e crescer e proteger a natureza será sempre uma relação complexa.

Não será por isso de estranhar, que cresçam as críticas à (in)sustentabilidade deste atual modelo, tal como, aqui e ali, continuam a emergir, como em épocas passadas, conflitos e tensões ambientais entre as populações, que defendem os seus territórios, e todo um sistema económico que ao atribuir valor aos recursos naturais tem na natureza o seu objeto do negócio.

Ora, já em 1987, a ONU e o relatório Brundtland apontavam para os previsíveis malefícios deste modelo de desenvolvimento, nomeadamente para os riscos do uso excessivo dos recursos naturais a fim de satisfazer padrões de produção e consumo, não levando em consideração a capacidade de suporte dos ecossistemas.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 90% da Humanidade respira ar poluído e que todos os anos ocorrem cinco milhões de mortes devido a água contaminada muita originada pelo uso de produtos químicos e por descargas (muitas ilegais) de resíduos.

Quanto mais saudáveis eles forem (os ecossistemas), mais saudável será o planeta e, é claro, as formas de vida que o habitam.” (ONU,2021)

Factos que têm levado à crescente tomada de consciência pelo cidadão da interdependência Sociedade, Economia e Ambiente, algo bem visível nas inquietações ambientais sentidas e que tem conduzido a alteração de comportamentos e atitudes.

“(…) Tem de haver uma relação cultural, emotiva e profunda com o planeta. A literacia ambiental é importantíssima para percebermos o valor das coisas, que o valor da natureza é importante para o nosso bem-estar, para a nossa boa água, para os nossos bons solos. Esse conhecimento é que depois nos leva a querer manter e cuidar daquilo que é a nossa relação com a natureza “(Luísa Schmidt,2023)

De acordo com os últimos inquéritos sobre sustentabilidade as grandes preocupações ambientais dos portugueses são os incêndios, a escassez de água e as alterações climáticas.

Poucas dúvidas subsistem que a degradação do solo, a perda da biodiversidade e a poluição resultam do modo como nos desligámos da natureza e como a (mal)tratamos, relegando para segundo plano os interesses das comunidades.

Em Portugal, ao longo dos tempos, os conflitos ambientais têm envolvido uma variedade de questões que refletem preocupações globais e locais.

Quem não se lembra da controvérsia científica e social gerada em torno do tratamento e destino a dar aos resíduos industriais perigosos em Portugal? Ou do aceso debate sobre a comercialização do glifosato, um herbicida desenvolvido como princípio ativo para matar ervas, mas classificado pela OMS, em 2015, como “carcinogéneo provável para o ser humano e carcinogéneo provado para animais de laboratório”.

São dois exemplos claros das relações problemáticas entre economia, sociedade e ambiente.

A agricultura intensiva e a destruição de habitats, a poluição industrial e os resíduos perigosos, são alguns dos problemas sociais contemporâneos que mais têm originado conflitos e tensões. A produção intensiva de alimentos, cada vez mais necessária para uma população a crescer, além de empobrecer o solo, coloca em perigo a segurança alimentar e o abastecimento de água potável, um recurso, vital para a sobrevivência humana, animal e vegetal. Um terço do consumo de água na Europa é da responsabilidade do setor agrícola.

“Hoje os problemas ambientais são isto. São problemas de fome, de poluição, de conflito, … São problemas profundos de desigualdade” sublinha a professora, Helena Freitas.

Polémicas ambientais que vão desde novas construções que modificam o território e alteram a vida das pessoas, até materiais que colocam em risco a saúde dos portugueses, como foi o caso do amianto nas escolas.

Quantas vezes, para libertar espaço útil para a construção de uma barragem, ou para uma infraestrutura de parque eólico, não é preciso alagar áreas de cultivo, deslocar populações ou destruir ecossistemas ricos em biodiversidade, em nome do desenvolvimento e do progresso?

Processos sempre altamente complexos e nada pacíficos que desde logo originam contestações e tensões sociais difíceis de ultrapassar, mormente com os habitantes locais, com a sua cultura e património e que deixaram e deixam muitas feridas por sarar, muitas irreparáveis.

Temos, por exemplo,  os casos (1) da aldeia de Vilarinho da Furna, uma ex-aldeia comunitária da freguesia de Campo do Gerês, Terras de Bouro, que ficou submersa no início dos anos 70 do século XX pela albufeira da barragem de Vilarinho da Furnas, (2) da antiga Aldeia da Luz, no Alentejo,  que ficou submersa após o início do enchimento da nova barragem do Alqueva, em 2002, e (3) da  Barragem do Pisão, infraestrutura essencial para a gestão dos recursos hídricos da região, mas que vai submergir a pequena aldeia do Pisão, no distrito de Portalegre, atualmente com cerca de 70 moradores e 110 casas, residentes estes que irão ser realojados em nova povoação.

“Sou da aldeia da Luz, a que vai ser alagada, calhou-nos esta cruz, mas uma cruz tão pesada” (João Chilrito Farias, poeta popular)

Também a poluição dos rios tem sido um problema recorrente, nomeadamente do rio Tejo, devido a despejos industriais e agrícolas.

Muitas têm sido as denúncias das populações e dos pescadores por causa das sucessivas descargas poluentes neste rio que têm graves implicações na qualidade das águas, seja para as regas dos campos, seja para a saúde das pessoas (veja-se a mortandade de peixes e a destruição da fauna e flora do Tejo tantas vezes denunciadas pela comunicação social).

O Movimento Pelo Tejo, um movimento de cidadania em defesa do Tejo, tem denunciado impactos ecológicos negativos sobre a biodiversidade, com significativos prejuízos para a atividade piscatória e para a saúde humana, em particular a relativa à apanha de bivalves, devido à deterioração da qualidade da água no estuário do Tejo (ProTejo,2023).

Outra atividade de contestação ambiental no nosso país foi a exploração mineira. Estamos todos recordados da abundante exploração industrial de urânio feita em Portugal no início do século XX que deixou, além de pesados passivos ambientais, efeitos nefastos para a saúde de quem ali laborou resultantes da exposição ao urânio.

Ora, a recente corrida ao lítio na Europa e em Portugal, metal essencial para as baterias elétricas e já apelidado de “petróleo branco”, não foge à regra. Seja pelos prejuízos ambientais e sociais que pode causar – contaminação dos solos e das águas subterrâneas, descaracterização da paisagem e alteração das atividades económicas – solo que era agrícola e florestal passa a ter uso extrativo – seja pela dúvida pelos reais benefícios económicos para as populações locais, trata-se de um processo, que a não ser bem explicado, carrega muita polémica e controvérsia, pois interfere com o dia a dia da população.

Outro caso de conflito envolvendo a população e a indústria local, foi durante muitos anos a tensão ambiental e social em Sines, muito devido à presença do fumo regularmente libertado pelas chaminés do complexo portuário-industrial e seu impacto visual e pelos odores industriais algo desagradáveis que constantemente interferia com a qualidade de vida e bem-estar daqueles residentes. Efeitos que nas últimas décadas o poder local em conjunto com as autoridades saúde e ambiente têm conseguido mitigar garantindo à população uma melhor qualidade do ar, da água e do solo. Aqui foi determinante o facto da central a carvão da EDP, em Sines – fonte significativa de emissão de diversos poluentes – ter encerrado em 2021.

Ultimamente, a expansão de projetos de energia eólica e solar também têm gerado muita discussão. Tivemos em 2011 a construção de um parque eólico em Sortelha, aldeia histórica de Portugal, no concelho do Sabugal, um projeto fortemente contestado por parte dos residentes, muito devido ao ruído e principalmente por interferir com a paisagem natural.

Mais recentemente, em 2023, foi autorizada por “imprescindível utilidade pública”, a construção do Parque Eólico de Morgavel, em Sines, projeto igualmente não isento de reclamações e protestos.

Se é verdade que estas fontes de energia são cruciais no combate às alterações climáticas, na redução da poluição e para a  diminuição da dependência energética de Portugal em relação ao exterior, a sua localização causa por vezes descontentamento junto das populações locais, devido ao impacto visual, ruído e perda de áreas agrícolas ou naturais, e colhe críticas dos ambientalistas, porque “representam uma ameaça à compatibilização com a proteção da biodiversidade, pelo facto de coincidir com o corredor de migração de aves selvagens protegidas ( águia-pesqueira, águia de Bonelli) e agravado pela afetação de 3 325 exemplares de sobreiro, com abate de 1821, em 32 hectares de povoamentos”, sustenta a Quercus, Organização Não Governamental de Ambiente.

Em síntese, o combate à crise climática passa hoje pela transição energética e pela redução das emissões de dióxido de carbono, ou seja, substituindo a eletricidade produzida a partir de fontes fósseis (carvão, petróleo, gás natural), pela gerada a partir de fontes renováveis (energia solar, eólica, hidroelétrica, geotérmica, biomassa, oceânica).

Nesse sentido, a produção de energia renovável terá de crescer significativamente para a descarbonização do sistema elétrico, o que não se fará sem conflitos (de localização) e tensões sociais locais.

Constata-se, porém, que a escolha da localização das novas infraestruturas (centrais solares, barragens ou parques eólicos) tem sido predominantemente baseada em critérios técnicos e económicos, secundarizando as implicações ambientais e sociais e que vão causar grandes transformações nos territórios e alterações nas paisagens, com sérios impactos negativos nos ecossistemas rurais, com a perda de solos férteis e de muita biodiversidade.

O mesmo acontecerá com muitas comunidades locais que, por força do destino, vão ver invadidos terrenos e caminhos e alterados seus modos de vida, sendo por isso natural que movimentos de oposição proliferem nestas zonas.

Também do lado dos ambientalistas surgem muitas críticas, nomeadamente sobre estudos de impacte ambiental que, segundo eles, não respeitam áreas protegidas e paisagens arqueológicas e patrimoniais ou desequilibram a biodiversidade da zona.

Em suma, continuamos a ter múltiplos conflitos socioambientais, sejam pela intromissão do Homem na natureza para a exploração desenfreada de recursos, sejam porque as populações não são inteiramente informadas e esclarecidas acerca dos benefícios que essas obras trazem à comunidade e onde, por vezes, sentem que não passam de atores secundários.

(…) a resolução dos problemas ambientais é mais robusta quando é local, com a integração dos saberes locais, trazendo as pessoas para o palco da tomada de decisões, nos assuntos que diretamente lhes dizem respeito, como sejam as condições ambientais e a qualidade de vida (Vasconcelos, 2006)

Conflitos que só serão amenizados com diálogo e forte participação das comunidades, com boa informação e, muito importante, com mais educação ambiental, pois, em nosso entendimento, será a melhor via para todos nós – os presentes e as futuras gerações – melhor compreendermos que pode ser possível vivermos em harmonia com a economia e em pleno respeito pelo ambiente. Assim todos queiramos entender!

Cidadãos mais bem informados saberão sempre melhor avaliar a situação. O exercício da cidadania participativa é um dos pilares vitais da sociedade.

Email: carlos.jesus@campus.fcsh.unl.pt

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  • Diário de Odivelas - Redação

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