A sociedade dos “likes”, dos “emojis” e das “selfies”

 “Quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir fica convencido de que os mortais não conseguem guardar nenhum segredo. Aqueles cujos lábios calam denunciam-se com as pontas dos dedos; a denúncia lhes sai por todos os poros. Por isso, a tarefa de tornar consciente o que há de mais secreto no anímico é perfeitamente exequível”.

Sigmund Freud (1856-1939).

 Há muito que o digital ultrapassou o analógico.

A internet e todas as suas funcionalidades alteraram a forma de ser e estar em sociedade e transformou o modo de comunicar, de trabalhar e de conviver. Deixou de ser uma ferramenta para ser uma tecnologia nova que permite aceder a mais informação, a mais serviços e a mais mundo…

“(…) viajamos por toda a parte sem ter experiência alguma (…) ficamos ao corrente de tudo sem adquirir com isso conhecimento algum” (Byung-Chul Han, 2018)

De uma comunicação de massa passámos para a uma comunicação em rede, um modelo comunicativo que não pára de crescer e evoluir.

 Vivemos hoje numa sociedade em rede e hiperinterconectada, facto que se pode constatar na apropriação social do uso das tecnologias por parte da população.

Dados do INE indicam que mais de 80% da população em Portugal utiliza a internet, sobretudo no telemóvel. E entre a totalidade dos cidadãos da União Europeia, 59% usou redes sociais em 2023, subindo esse valor entre nós para perto dos 68%, segundo dados divulgados pelo Eurostat.

Na verdade, as redes sociais ao facilitar o contato entre todos vieram “minimizar” a falta física do outro e “reduzir” a distância, sem que, no entanto, tal nos tenha trazido mais proximidade. Podemos ter “amigos” e seguidores sem que alguma vez nos tivéssemos encontrado…

Os meios sociais representam um grau zero do social sustenta o filósofo e ensaísta sul-coreano, Byung-Chul Han, na sua obra “A Expulsão do Outro”.

Um fenómeno social global, transversal a todas as camadas sociais e onde é possível o indivíduo, sem sair da sua zona de conforto, expor-se, dar a conhecer o seu modo de pensar relativo a todo e qualquer assunto e até partilhar em público estados de alma, sentimentos e emoções, algo que do antecedente só a si lhe pertenciam.

Erving Goffman (1922-1982), um cientista social que analisou o comportamento humano e a sua forma de manifestação, deixou claro nas suas obras que o homem em sociedade, tal como um ator de teatro no palco, utiliza formas de representação para se mostrar aos seus semelhantes, esperando deles, da plateia, elogios, aplausos ou vaias que validarão (ou invalidarão) o seu comportamento, a sua atuação.

Temos o caso da fotografia que era tirada para preservar memórias e experiências e que atualmente, no dia a dia das redes sociais (a Selfie), procura somente validação e reconhecimento externo, ações que vão ajudar o indivíduo a construir a sua narrativa pessoal.

Na realidade, atravessamos uma época peculiar, na qual o sujeito cada vez mais sente a necessidade de ser visto/observado pelos seus pares (sem o seu olhar), e desse modo ter sua existência /competência aprovada e legitimada socialmente.

O que importa mesmo é alcançar a atenção do outro e aguardar ansiosamente o seu feedback que chegará com os seus emojis, “caracteres de imagem” que surgiram originalmente no Japão e que usamos para expressar emoções e ideias de forma divertida e rápida.

Vivemos num sistema de símbolos/ sinais/gestos que o mundo social interiorizou desde cedo, pois carregam significados combinados.

A própria comunicação sem o contributo da linguagem, verbal e não verbal, seria limitada. Um dado conjunto de letras ou de números identificam de imediato palavras e quantidades que todos entendemos. Tal como um simples encolher de ombros, um bater da palma de cada uma das mãos uma contra a outra ou um franzir do nariz são expressões corporais e faciais, facilmente reconhecidas por todos.

Tratam-se de símbolos e códigos que intermedeiam a nossa interação com os outros, a nossa adaptação ao espaço publico e a própria organização social.

 

No espaço virtual o mesmo se passa. A linguagem e a escrita reduziram-se a uma conjugação de palavras, de imagens, de “emojis”, que flutuam pelos nossos ecrãs e que preenchem as nossas vidas.

Estamos num período marcado pela espetacularização, onde a “Sociedade do Espetáculo” domina tudo e todos, algo que, segundo o francês Guy Debord (1931-1994), empobrece a verdadeira qualidade da vida, pois leva o natural e o autêntico a tornaram-se ilusões, representações, aparência.

“(…) quanto mais (o espectador) aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo”..

(Debord,1967)

A atual obsessão pela ”selfie”, novo capítulo na história da fotografia, é um bom exemplo dessa sociedade individualista e hedonista onde é exacerbada a autoestima e a cultura do “eu”, o que leva Will Storr, recorrendo a um mito da mitologia grega, a questionar “de onde virá esta fome de protagonismo ou, se quisermos, narcisismo?”, um conceito que, recorde-se, Freud, o pai da psicanálise, diagnosticou como perversão e uma opção neurótica pela solidão estéril.

 

Assim, como Narciso, pensamos que estamos vendo um outro, mas o que nos enamora, em qualquer imagem, é o reflexo de nós mesmos, é a nossa entrada em cena como protagonistas da pragmática da representação

(Braga,2021)

O indivíduo das selfies constrói-se, pois, sob um regime de visibilidade em que ser visto é existir. A sua vida (online) passa a ser regulada e mediada pelas redes e por imagens e “likes”.

A adição às selfies não tem muito a ver com um saudável amor de si mesmo: é mais do que a marcha do vazio de eu narcísico que ficou só. Perante o vazio interior, o sujeito tenta em vão produzir se a si mesmo.  Mas é só o vazio que se reproduz. As selfies são o eu em formas vazias

(Byung-Chul Han, 2018)

De acordo com os cientistas, o indivíduo quando recebe um comentário positivo ou um “like” numa foto, o cérebro gera descargas de dopamina, a “molécula da motivação” e de serotonina, “a molécula da felicidade”, substâncias químicas que estimulam o cérebro e que vão promover sentimentos de prazer, bem-estar, confiança e recompensa. Ao invés, comentários negativos ou críticas destrutivas nas redes fazem diminuir os níveis dessas substâncias provocando depressão e ansiedade, levando muitas vezes ao consumo de fármacos como antidepressivos ou ansiolíticos.

São estes os dilemas do sujeito contemporâneo e da realidade virtual, pois ainda que favoreça encontros e “derrube” distâncias, não passa de um espaço de pura solidão, que, ora nos causa prazer, ora nos deixa deprimidos, dependendo do que lemos ou vemos ali. Sinais dos tempos!

Em suma, as conexões virtuais e as redes sociais, além de sedutoras, permitem uma liberdade jamais possível fora desse espaço. Ali, as pessoas podem ser aquilo que desejarem ser. Amigos podem ser “desamigados”. Dados, imagens, identidades ou perfis (verdadeiros ou falsos), podem ser apagados. Nunca foi permitido mentir com uma tão perfeita ausência de consequências…

Em oposição à realidade com corpos tangíveis e materializados, a ausência de existência, pode definir o virtual. Virtual significa possibilidade viável, porém sem consequência real”

(Michaelis, 2020).

Somos contemporâneos de uma grande revolução científica, digital e comportamental. A nossa subjetividade tem sofrido inúmeras transformações no mundo atual.

Acresce o facto de presentemente queremos resolver os problemas de forma indolor, rápido e sem obstáculos, e, de preferência, sem limites.

“É preciso lembrar que a psicanálise não interdita o gozo, mas aponta a desarmonia entre o sujeito e o seu gozo”

(Pimentel,2019)

Por fim, recordar que sempre nos construímos na relação com o outro. O “Eu” só existe e é capaz de realizar-se com o “Outro”. Não há eu sem o outro

Email: carlos.jesus@campus.fcsh.unl.pt

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  • Diário de Odivelas - Redação

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