“Sombras“, de Miguel Falcão, peça em cena na Sala-Estúdio do Teatro da Trindade, é o mais recente Prémio Miguel Rovisco, que o Inatel atribui anualmente ao Melhor Texto Teatral Português apresentado a concurso.
Em rápidas palavras. uma filha que terá partido para o estrangeiro depois de casar, regressa a casa da mãe, com uma filha bebé, a fim de aí passar um tempo. Só que o convívio entre ambas será cada vez mais difícil. Estamos em pleno tempo da ditadura do Estado Novo e cada uma delas tem posicionamentos distintos, mesmo opostos. Enquanto a mãe é uma defensora do regime então em vigor, católica conservadora, viúva inconsolável, a filha é uma mulher que luta por uma mudança radical, pela liberdade, pelo que, à partida, entrariam em choque.
Creio que estamos perante personagens estereotipadas, nem a filha seria tão ingénua que se fosse meter na “boca do lobo“, confessando à mãe os seus propósitos e segredos, nem esta seria uma megera execrável. Ninguém é totalmente bom ou mau. Mesmo os chefes nazis eram maridos e pais extremosos. O Mal reveste-se, no privado, de uma banalidade e normalidade familiar, “bons” sentimentos até.
É uma peça de extremos que roça o folhetinesco, o exagero. Tem, no entanto, na encenação de Ana Nave, aspetos positivos: o início, antes do começo, do contacto com o quotidiano desta mãe “desnaturada“, as composições atentas e justas das suas duas intérpretes: Carla Maciel e da jovem Mafalda Marafusta. Já a parte do interrogatório e tortura da Pide/DGS com as sombras chinesas e a sequente projeção vídeo das flores me parece perfeitamente descabida, mesmo que seja uma referência ao pregador que o marido da filha lhe ofereceu. E as fugas de Caxias ou Peniche, presídios políticos, não eram assim tão fáceis como podem aqui parecer.
Também não me parece boa solução de mãe e filha não falarem, logo de início, frente a frente, mesmo que tal queira dizer que os seus discursos e atitudes sejam incompatíveis. Atitude que depois se irá repetir.
De vez em quando entra uma nova “moda” no Teatro, usada até à exaustão, ao cansaço, falo do uso do cenário em módulos desdobráveis, tipo Lego, que vai mudando manipulado pelos atores. É prático, mas está a cair na banalização, na “receita“.
É uma peça muito preto no branco. Cheia de boas intenções mas que acho não resultar. Lembro-me das peças comemorativas dos 50 anos do 25 de Abril levadas à cena pelo Teatro da Comuna e o Experimental de Cascais, originais portugueses também, bem construídos e passados em presídios políticos de então. Com uma verdade enorme, impressionantes, bem construídos e encenados. E com interpretações estupendas e personagens desgarradoras e plenas de verdade.
Estas “Sombras”, portanto, não me convenceram.
Sala Estúdio do Teatro da Trindade
Até 03 de novembro | Quarta a domingo às 19h00. 60’.
10€ a 14€. M/12
De Miguel Falcão
Encenação Ana Nave
Com Carla Maciel e Mafalda Marafusta
Cenografia Rui Francisco
Desenho de luz Tasso Adamopoulos
Desenho de som Miguel Lucas Mendes
Voz off Ana Saltão e Catarina Guerreiro
Fotografia cartaz e spot TV Pedro Macedo – Framed Photos
Coprodução Teatro da Trindade INATEL e RTP
CONVERSA COM O PÚBLICO 13 OUT / Dom. após o espetáculo