“Monóculo, retrato de S. Von Harden” no Teatro Aberto

Continuo a fascinar-me com os atores, pelo menos com alguns deles. Porque o ator é um travesti, um transformista, dá a voz e o corpo, a máscara a cada nova personagem, constrói-a, habita-a, transforma-se nela, de dentro para fora. Neste aspeto a transformação é um desafio, o “boneco” como se diz em Teatro já é uma visão impactante da personagem. Um homem cujo género é indefinido, saltos meio altos, vestido de cores púrpura, boca pintada, gestos de mulher, e estamos perante o mistério, algo que nos diz do clima de libertação sexual que sucedeu, na Alemanha, à derrota pesada da Primeira Grande Guerra, e o que o estupendo filme de Bob Fosse, “Cabaré” (1972) nos mostra de uma forma esclarecedora.

Peça de um homem, Stéphane Ghislain Roussell, belga, mas fixado no Luxemburgo, que escreve a partir da Pintura porque une, nos seus espetáculos, a performance, a música e o teatro. Encenou Margueritte Duras – “Savannah Bay“, assim como as óperas “Wonderful Deluxe” e “Para as Nossas Irmãs, para os Nossos Irmãos“. Tem trabalhado ainda como comissário de exposições, investigador e programador em diversos museus como o Louvre, o da Música e o Centro Pompidou. Em 2012 fundou, no Luxemburgo, a sua Companhia, Ghislain Roussell. que apelidou, em 2019 de Projecten (Projetos). Há assim toda uma multidisciplinaridade na sua obra.

A protagonista deste monólogo é a jornalista S. von Harden, de cigarro na mão, monóculo e aparência ambígua que surge como representante de uma mulher emancipada que deseja explorar novas formas de vida social e sexual. O seu aspeto, o figurino, é claramente de subversão das habituais convenções sociais, de rutura, mesmo de desafio. É este, inquietante, que nos propõe uma nova forma de olhar o mundo e para os outros, de não nos contermos/determos nos padrões sociais e morais pré-estabelecidos, rompendo as normas.

Foi um desafio que o pintor expressionista alemão Otto Dix faz a S. von Harden, que se queixa frequentemente do tempo que está em pose, quieto, e que aproveita para falar do meio artístico da época, das suas amizades, de uma elite que pretende romper com o chamado sexo binário. É contra esta tentativa de rutura que o partido nazi se erguerá também, tendo como base o sentimento de humilhação do povo alemão pelas pesadas condições que os vencedores da Guerra de 1914/18 lhe impuseram, e que Hitler, dada a incapacidade dos anteriores governantes democráticos, se ergue e conseguirá ganhar as eleições.

Acho que, por tudo isto este monólogo não pode ficar reduzido a uma mera questão de género, mas, sim, adquire nítidos contornos políticos. Basta ver o que Hitler fez às sinistras S.A. que o ajudaram a chegar ao poder, fazendo as tarefas mais sujas, e de que reinando, no seu seio, uma enorme liberdade sexual, depressa se livrou delas e dos seus chefes porque estavam a colocar mal o aspeto de respeitabilidade que desejava dar às suas teorias políticas enquanto poder e governo. Reprimindo as liberdades, também as individuais e de sexo, estabeleceu uma segura e total ditadura. A pureza da raça ariana assim o exigia. Aliás é uma lição em que devemos sempre atentar. Quem comanda o sexo e estabelece uma moral rígida vigente tradicional comanda mais facilmente os homens e mulheres.

Numa muito boa encenação de Rui Neto – cenário, figurino, banda sonora como contraponto, esta peça tem, no seu ator, um desenho impressionante, rigoroso, ao milímetro, da personagem. É, de facto, um trabalho soberbo do jovem Cristóvão Campos, uma transformação absoluta, desde a voz ao andar, da gestualidade às mãos, a todo o corpo. Maravilhoso. É assim uma peça que irei ver pela segunda vez amanhã, desta feita como mero espectador, e que recomendo vivamente. A não perder.

Encenação: Rui Neto

Dramaturgia: Vera San Payo de Lemos

Cenário: Marisa Fernandes

Figurinos: Marisa Fernandes

Desenho de luz: Diana dos Santos

Vídeo: Jorge Albuquerque

Com: Cristóvão Campos

Teatro Aberto

Até 03 novembro 2024

Quarta e quinta-feira: 19h00 | Sexta-feira: 21h30 | Sábado: 21h30 | Domingo: 16h00. 17€

Rua Armando Cortez – Lisboa

213 880 086

Imagem: http://www.teatroaberto.com

 

  • Diário de Odivelas - Redação

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