Diário de Bordo – Nepal e Butão | Crónica 2

Acompanhem o relato da nossa viagem a dois países asiáticos, Nepal e Butão. Feita em abril de 2011, por António Cruz e Ana Fialho, dois apaixonados por conhecer o Mundo e os seus recantos ainda pouco visitados. António, economista e Ana, professora, aproveitam todos as suas férias nesta exploração. Culturas diferentes, interação com os locais, gastronomia e fotografia são as suas preferências nestas descobertas.

Dia 3

O dia começou cedo, porque havia muito para visitar.

Começamos por Patan, uma das 3 cidades reais do vale de Kathmandu. Fica mesmo junto à cidade de Kathmandu, separadas apenas por um rio. Patan tem uma história riquíssima e uma arquitetura Newar muito bem preservada. O nome Newar vem do povo com o mesmo nome, grupo étnico nativo do Nepal, e que durante séculos foi o povo responsável pela construção dos principais templos e palácios da região. A cidade de Patan é o centro cultural e artístico do país, com muitos templos hindus e budistas, palácios e esculturas. Paga-se para entrar, algo como 5 €. Visita a Patan Durbar Square, centro histórico e Património Mundial da Unesco. Visita a vários templos, de onde destacamos o Templo de Krishna Mandir, construído em pedra, o que é pouco comum, e o Golden Temple, mosteiro decorado com ouro e bronze.

Sendo sábado, dia de descanso e único dia livre, mesmo na escola, os templos estavam cheios e vivenciámos, com os locais, a espiritualidade reinante nesta cidade. Muitos artesãos locais, aproveitando o dia de descanso da população, vendem todo o tipo de arte, e não resistimos a umas bolsas e pulseiras, muito étnicas e de design muito interessante.

Num talho local, muito diferente daquilo a que estamos habituados, um talhante cortava com esforço uma cabeça de búfalo.

Continuando numa onda de espiritualidade, saímos de Patan e fomos visitar Pashupatinath, local sagrado e muito intenso, onde acontecem as cerimónias de cremação. Pashupatinath é um templo hindu dedicado a Shiva, sendo o mais sagrado do Nepal, e local de peregrinação de eleição. Fica nas margens do rio Bagmati.

Neste templo fazem-se cremações públicas nas plataformas ao lado do rio. Tivemos oportunidade de assistir à parte final deste ritual, impactante para nós, mas de um interesse cultural surpreendente e riquíssimo, que por incrível que possa parecer, nos transporta para outra dimensão espiritual, difícil de explicar.

Em conversa com um local, foi-nos explicado todo o processo. Após a morte, o corpo é lavado e purificado com água do rio, considerado sagrado. Aos homens são vestidas roupas novas de cor branca e às mulheres de cor vermelha. O corpo é transportado numa estrutura de madeira, decorada com flores – e foi a partir daqui que assistimos – até à pira funerária, composta de 250 quilos de madeira de sândalo. Nesta deslocação, os familiares entoam mantras e cânticos. Normalmente é o filho mais velho que coloca o corpo na pira, com a cabeça voltada para norte. O corpo é envolto em flores e arroz. O arroz tem vários significados na cerimónia de cremação. Alimenta a alma na sua jornada para o além, purifica a alma e simboliza o ciclo da vida e da natureza, que será o nascimento, morte e renascimento. Muitas famílias colocam ouro ou uma moeda na boca do falecido, para a alma poder pagar a sua jornada após a morte. O corpo é coberto com palha e o parente mais próximo acende a pira, que arde durante três horas.

Depois da cremação as cinzas são atiradas ao rio. Reparámos que muitos miúdos mergulham no rio, e explicaram-nos que são crianças muito pobres, que tentam apanhar possíveis moedas que os falecidos levem na boca. O simpático “explicador” que foi falando connosco ao longo do ritual, também nos explicou que no país todos os hindus são cremados, independentemente do motivo da morte. Na Índia já tal não acontece. Se, por exemplo, a morte ocorrer por picada de serpente, o corpo é considerado impuro e é simplesmente atirado ao rio.

O luto dura 13 dias, os homens vestem-se apenas de vestes brancas, e afastam-se de eventos sociais.

Neste templo também podem ser acolhidas pessoas que se preveja falecerem em breve, para assim poderem viver os seus últimos dias num ambiente espiritual, e terem uma jornada tranquila após a morte.

No local encontrámos muitos Sadhus, ou homens santos, que se cobrem de cinzas e pintam o rosto, com cores coloridas. Poucos vivem verdadeiramente como Sadhus, e a esmagadora maioria são profissionais das gorjetas, em troca de fotografias.

A próxima paragem foi na Boudhanath Stupa, um dos lugares mais sagrados do país, e um dos maiores e mais importantes monumentos budistas do mundo, especialmente para os budistas tibetanos. A esmagadora maioria dos presentes envergava trajes típicos do Tibete. Soubemos serem exilados fugidos da repressão chinesa.

As stupas são uma construção em forma de domo, que representam o caminho para a iluminação. Contêm relíquias sagradas e orações, e são consideradas um vórtice espiritual. Esta é Património Mundial da Unesco, desde 1979, e tem cinco vertentes com significado espiritual: representa o universo budista em equilíbrio; os 2 olhos enormes são o olhar de Buda e a sua sabedoria compassiva; o número 1 entre os olhos é a unidade da consciência; o seu formato representa os cinco elementos, a terra, a água, o fogo, o ar e o vazio ou éter.

Enquanto ali estivemos, vivenciámos uma experiência profundamente serena e relaxante. Tal como os locais, caminhámos em redor da stupa, sempre na direção dos ponteiros do relógio, e girámos as rodas de oração, fazendo a “kora”. O som dos mantras tibetanos, murmurados em voz baixa, pelos fiéis, torna o ambiente quase mágico. Uma experiência libertadora e enriquecedora, que dificilmente se esquece.

Hora de almoço, e a escolha recaiu no Buddha Kitchen, um restaurante com primeiro andar, onde ficámos, com uma vista privilegiada para a Boudhanath Stupa. Com sorte conseguimos mesa à janela, e pudemos observar os rituais que os fiéis praticavam em redor da stupa. No restaurante serviram-nos umas iguarias locais e aproveitámos para experimentar a cerveja nepalesa, que vos garanto ser deliciosa. A não perder a cerveja Everest, servida em garrafas de 630 ml.

Depois do almoço, rumo para a zona de Durban Square, onde nos perdemos no confuso comércio de rua, mas de motivos fotográficos deliciosos. Eis quando uma senhora, que vendia legumes na rua, se dirige a nós com a filha ao colo, e com um sorriso inesquecível, começa a falar connosco. Sem entendermos o que pretendia, com a ajuda de outro comerciante, que arranhava umas palavras de inglês, percebemos querer que a fotografássemos com a filha. Só conseguimos mostrar o resultado no ecrã da máquina, mas queríamos mesmo entregar as fotos em papel, o que iria fazer a senhora imensamente feliz. Infelizmente não conseguimos comunicar para pedir o endereço, e ainda percorremos várias ruas a tentar descobrir uma loja que pudesse imprimir fotos, mas sem sucesso. Foi um momento de frustração, tristeza e impotência. Se algum dia voltarmos a Kathmandu, levaremos estas fotos impressas, e tentaremos entregá-las ao destinatário. Nunca se sabe.

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  • Diário de Odivelas - Redação

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