
Por certo já ouviu falar dos “bebés Reborn”, bonecos (as) artesanais feitos de silicone, com pele frágil, olhos de vidro e fios de cabelo, o que os torna muito semelhantes a recém-nascidos, e que quando vestidos com roupinha de bebé se confundem com bebés reais, a tal ponto de serem tratados por alguns adultos como filhos de verdade….
Experiências irreais e práticas virtuais que nos têm acompanhado ao longo dos tempos e que vêm ocupar o verdadeiro espaço do ser humano, algo que sempre que ocorre nos dá que pensar.
No Japão há muitos anos que têm sucesso as bonecas sexuais (as sex dolls), parceiras (os) sexuais feitas(os) de silicone que inundam lojas e que continuam a atrair consumidores em todas as latitudes, uma experiência que poderá ajudar a ultrapassar problemas de autoestima e dificuldades em relacionamentos.
De igual modo, e se estamos recordados, nos anos 90 do século XX tivemos os “Tamagotchis” -, brinquedos que faziam a vez de animais de estimação. Um animalzinho virtual a quem os adolescentes e não só, dedicavam horas e horas e a quem davam carinho virtual, comida virtual, banho virtual, etc..
Práticas e tendências que vão para lá da ficção.
Ora, tal está a acontecer no Brasil com os bonecos (bebés) “Reborn” onde têm ocorrido casos de quem tenha ido a uma unidade de saúde pedir para ser dada uma vacina ao seu boneco, ao seu bebé…, situação que está a merecer das autoridades de saúde a maior atenção.
Um fenómeno que já chegou ao nosso país, o que se pode constatar na existência de listas de espera para encomendas para um artigo que pode custar centenas ou milhares de euros.
Outro facto digno de registo e que atesta bem o crescimento deste movimento foi a realização, em 2025, no Porto, da primeira Expo Reborn de Portugal, evento que contou com muitos interessados.
Trata-se duma prática social que vem dos tempos da Segunda Guerra Mundial, quando para entreter as crianças mães e avós inglesas restauravam e faziam renascer bonecas antigas e danificadas dando-lhes uma nova vida (“renascimento” em inglês significa “reborn”).
À época foi uma forma criativa encontrada para em tempos difíceis dar alguma alegria aos mais pequenos.
Com o tempo, e com a preciosa ajuda da internet e das redes sociais – no Tik Tok e Instagram é possível visualizar vídeos e postagens que mostram os bonecos a serem mimados, vestidos e alimentados…– a técnica de “reborn” popularizou-se nos Estados Unidos (onde mais podia ser?) e atrai hoje um público diverso e plural.
Mas não estaremos nós com esta prática a humanizar bonecos e brinquedos…? Comportamento já tantas vezes usado por alguns donos de animais estimação quando muitas vezes, e sem se aperceberem, estão a humanizar os seus pets. O tempo se encarregará de responder.
No caso destes bonecos “reborn” falamos de um cenário real ou imaginário? Ou será só mais um negócio altamente lucrativo e um expediente praticado por alguns influencers para assim obterem mais seguidores nas redes sociais? No final o que interessa é aparecer, ser falado, diz o sábio povo…
Quando aceitarmos que o afeto e o amor sejam tratados como mera mercadoria, é sinal de que o vínculo humano está a falhar.
Se para uns estes bonecos “Reborn” são usados como simples objetos de brincadeira, de coleção ou mesmo como prática para a parentalidade, para outros, tratam-se de objetos terapêuticos, que oferecem consolo emocional em situações de perdas, carência afetiva, ansiedade ou solidão.
Um comportamento que inquieta e preocupa uns, dado tratar-se de uma prática perturbadora com impacto psicológico e relacional, mas que leva outros a procurarem explicações para este tipo de distopia que esta realidade imaginária representa, pois quando as verdadeiras emoções e sentimentos são canalizadas para algo que não responde, não exige, não frustra, só nos pode levar à reflexão.
De acordo com os profissionais de saúde é um fenómeno a que devemos estar atentos pois o recurso a estes elementos de substituição de afetos corre o risco de agravar o isolamento social e a solidão, em tempos já de si muito individualistas, e onde cada vez mais são mais difíceis os relacionamentos sociais.
Quando é num boneco ou num brinquedo digital, e não num ser humano verdadeiro que nos apegamos, algo se passa dentro de nós e muito nos pode dizer do estado emocional e relacional da sociedade atual.
“De repente, nós encontramos respostas no mercado – coisas que se compram e que se vendem – para substituir um bocadinho aquilo que são as necessidades sociais” (…) Estamos a deslocar-nos de vidas em que tínhamos estruturas sociais marcadas – a família, os grupos religiosos, os grupos sociais – para dimensões muito individuais” sublinha Miguel Ricou, presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses.
Já para o psiquiatra e psicanalista inglês John Bowlby (1907-1990), criador da Teoria do Apego, a necessidade de vínculo é uma das forças psíquicas mais poderosas da espécie humana. Quando o afeto nos é negado criamos mecanismos simbólicos para tentar preencher esse vazio. Para algumas pessoas, o boneco “Reborn” funciona como um substituto simbólico desses vínculos perdidos ou negados.
Mas trata-se de algo ilusório. Substituir relações humanas por vínculos com objetos, compromete a nossa capacidade de lidar com o Outro na sua complexidade. O boneco “reborn” é previsível, controlável, sempre disponível. As pessoas não o são. São reais!
Alegria, traumas, perdas ou frustrações farão sempre parte da nossa vida e deverá ser sempre com o nosso semelhante, com o ser humano, que encontraremos o necessário consolo e equilíbrio emocional.
Porém, haverá casos em que este boneco hiper-realista poderá atenuar temporariamente a dor de uma mãe que está a sofrer, seja porque perdeu um recém-nascido ou porque teve um aborto espontâneo, por exemplo.
Outras situações existirão em que profissionais de saúde mental recorrem a estes bonecos para dar formação, nomeadamente em cursos de cuidados com recém-nascidos e até como companhia terapêutica para idosos com problemas de demência, especialmente Alzheimer, pois o facto de lhes poder evocar memórias poderá reduzir-lhes a ansiedade.
Um tema complexo que está longe de ser consensual na sociedade e que tem dado origem a debate e a alguma controvérsia.
Na verdade, podem ser muitas as razões, a maioria das vezes não percetíveis por nós, que levam alguém a adquirir estes bonecos “reborn”, pelo que, será prudente e de bom-senso, não julgarmos precocemente a situação e procurar entender os motivos e, muito importante, ajudar essas pessoas no que nos for possível.
Ao invés de logo desqualificarmos esta prática aproveitemos a ocasião para tentar compreender as razões que levam um ser humano a apegar-se a um boneco “Reborn”.
Algo para que futuramente teremos que estar preparados para entender, pois o poder da Inteligência artificial e da robótica irá tornar cada vez mais ténue a fronteira entre o mundo real e o mundo digital, ou seja, entre o homem e a máquina, entre o homem e o objeto.
Neste mundo inseguro, indiferente e vazio em que vivemos todo o comportamento humano é suscetível de ser compreendido, basta nós querermos fazer esse esforço.
Afinal, o difícil é pôr-nos no lugar do outro.
Carlos de Jesus
Licenciado em Sociologia. Mestre e Doutorando em Ecologia Humana
carlos.jesus@campus.fcsh.unl.pt
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