Um bom ponto de partida: um texto que toca um problema grave e sensível – a morte de um nascituro e um luto difícil de fazer sobretudo quando era esperado com muitas expectativas. Duas personagens, bem desenhadas nas suas várias nuances e diferenças, diversas reações, antes e depois daquela morte, um cenário, por elementos, que se vai construindo, e modificando, segundo as várias cenas e locais, dois atores maravilhosos, em estado de graça, que nos levam atrás de si durante toda a duração desta peça.
A autora, uma mulher – e tal aqui não é casual – Cordélia O’Neill – construiu este texto dramatúrgico a partir de um caso semelhante acontecido com uma amiga sua. Pessoalmente conheço alguns casos em que um filho/filha morre antes dos pais – algo, que, qualquer que seja a sua idade, não é muito natural. De início estes dois seres, Alex e Rupert, solteiros, encontram-se, por acaso, no Metro, e acende-se logo uma chama entre ambos. Na conversa do primeiro encontro nota-se logo no que diferem: Rupert, mais tímido e introvertido, Alex, mais direta e interventiva. Casam-se e ficam à espera do primeiro filho, preparando tudo, como o quarto da criança e os brinquedos, com enorme alegria e expectativa.
Dois notáveis atores
Depois de um parto, difícil, a criança nasce morta, o que é um golpe enorme para os pais. Cada um tenta viver o luto à sua maneira. Rupert, contabilista de profissão, agarra-se a uma rotina de vida para sobreviver, mas Alex vai negar essa morte. tão penosa, e continua a vivenciar a sua existência como se o filho/a (?) estivesse ainda vivo, recusando-se, como defesa, a encarar a realidade. O seu trauma é enorme e nem o marido a consegue trazer à razão. Desenha-se assim uma série de conflitos e confrontos porque, a vida em conjunto, agora se transformou num inferno, criando uma separação inevitável dado que Alex se recusa a ultrapassar a sua lancinante dor.
A autora não faz qualquer julgamento às diferentes formas de reação. de cada membro deste casal, ao abismo inesperado que, de repente, se abriu sob os seus pés. Alex trouxe esse feto, esse filho tão desejado, no seu ventre, nove meses, a sua ligação é mais visceral. Rupert tenta, a todo o custo, superar essa perda, mas a diferente reação de ambos vai-os distanciando cada vez mais, até que se dá outra morte, a da sua relação, como casal, que se complementava, mas onde as diferenças se adivinhavam enormes e geradoras de diferentes posturas perante a morte do bebé.
É um trabalho dividido em cenas, alternando as de um humor inicial, com outras de um dramatismo extremo, mas sempre interiorizado, vivenciado, nunca dramalhão, mas que nos coloca na pele deste casal colocado à prova perante acontecimento tão nefasto e inesperado. É uma representação que me lembra o “Método” do Actor’ Studio em que cada cena surge através de um narrador, a princípio Rupert, depois da morte da criança, Alex, esta já como mãe profundamente ferida e inconsolável.
Boa iluminação e um cenário de Eurico Lopes composto por vários elementos que, manejados pelos atores, servem de enquadramento plástico adequado, como num jogo de Lego, para os locais diversos de cada nova cena. E dois atores, Sara Barradas e Diogo Martins, maravilhosos, imensos, comovedores, tremendos que nos mantêm em suspenso durante toda a duração desta peça, descoberta por Flávio Gil, numa direção prodigiosa de comediantes que nos emociona e comove. O público aplaudiu longamente, de pé, no final.
Amei e recomendo vivamente pois estará, em cena, só até ao final deste mês. A não perder, portanto.
De: Cordelia O’Neill
Tradução: João Sá Coelho
Encenação: Flávio Gil
Com: Diogo Martins e Sara Barradas
Cenografia: Eurico Lopes
Desenho de luz: Paulo Santos
Música: Artur Guimarães
Produção executiva: Ana Balbi
Coprodução: Teatro da Trindade INATEL e Camarote Produções
Neste espetáculo são utilizados efeitos com luz strobe, que podem afetar pessoas suscetíveis à epilepsia fotossensível ou com outros tipos de fotossensibilidades.
Sala-Estúdio do Teatro da Trindade
Até 30 de junho
De quarta a domingo às 19h00
9€ a 12€. M16
Fotografia: Site Teatro da Trindade