Desde os primórdios da Humanidade que o Homem se relaciona e interage com as várias espécies de animais, algo bem visível nas inúmeras gravuras e pinturas deixadas em cavernas e grutas, até então bem marcadas por atos de caça e sobrevivência.
Com o número de indivíduos para alimentar a crescer e com o produto da caça a tornar-se insuficiente, o Homem para sobreviver foi levado a apostar no trabalho agrícola.
Para a difícil e árdua tarefa de adquirir alimentos necessários ao seu sustento, vai recorrer a alguns animais que, entretanto, foram domesticados pelo Homem.
Estudos vários indicam ser o lobo cinzento – o cão – o primeiro animal a ser domesticado há mais de 15 mil anos na Europa e na Ásia pelos nossos antepassados caçadores-recoletores. O cão depois de muito caçar e de auxiliar o ser humano na proteção do gado, passou a proteger as comunidades.
Seguiu-se a domesticação de bois, vacas, cavalos, ovelhas e cabras e outros, animais que se viriam a revelar da maior importância para a vida e sustento das populações rurais.
Passada esta fase entrámos numa época muito marcada por valores religiosos – glorificação do divino e do sobrenatural – e onde os animais são vistos como uma espécie subordinada aos desejos e necessidades do Homem, seja como alimento, agasalho, transporte ou proteção.
Após a Revolução Industrial e na contemporaneidade cresce o interesse e apreço do ser humano sobre o animal, elevando-o a “animal de companhia”, inicialmente nas casas das classes mais abastadas.
Uma relação que se vai desenvolvendo e que o processo de urbanização vai exponenciar, trazendo para o interior das habitações, em completa e saudável harmonia, cães, gatos e recentemente furões, considerados “animais de companhia” (pets), de acordo com o Decreto-Lei n.º 82/2019.
Longe vão os tempos em que os cães ladravam e mordiam à aproximação do ser humano ou que as crianças assustadas logo desatavam a correr ao avistarem um cão.
Atualmente os animais domésticos conquistaram por completo o respeito da sociedade no seu todo, algo bem percecionado na legislação europeia relativa ao bem-estar e proteção dos animais.
Daí até à “humanização” dos animais ou “antropomorfismo”, que consiste em atribuir características humanas, sejam elas físicas, emocionais ou comportamentais, aos animais de companhia, foi um pequeno salto.
Na realidade, os animais são hoje cada vez mais tratados como autênticos membros da família, tal é o afeto e carinho que dedicam aos seus responsáveis, em particular às crianças. Um relacionamento que traz grandes benefícios para ambas as partes.
Se, no ser humano de qualquer idade, são notórias as vantagens no relacionamento com estes companheiros do dia a dia, sejam ao nível físico, psicológico e social, também o animal recolherá grandes benefícios desta relação, que vão desde alimentação e proteção (já não precisam de se defender de predadores), até ao cuidado e bem-estar que lhe é proporcionado.
Contudo temos vozes que questionam o modo como atualmente os animais passaram a coabitar e partilhar por completo com os seus “donos” o mesmo espaço habitacional.
«Estamos a artificializar a vida do animal, quando atualmente restringimos aos nossos animais domésticos todos a sua liberdade e animalidade natural» refere o professor Fernando Araújo, a propósito do processo de esterilização de animais, um jurista que se tem debruçado sobre a temática dos direitos dos animais.
Desde Darwin que aprendemos que todos nós descendemos dos primatas mantendo-se, no entanto, seja pelos comportamentos, seja pela cultura social, os humanos- animais racionais, acima dos outros animais não racionais.
«Quando o Homem reage aos seus instintos básicos de sobrevivência, tais como a reprodução, a respiração, a locomoção, a alimentação e a comunicação evidencia a sua animalidade» (Mamede, 1995).
Refira-se ser este um debate filosófico e ético que teve o seu inicio com as reflexões de Peter Singer (1975), fervoroso defensor do especismo (discriminação de interesses dos indivíduos da mesma espécie, em desfavor dos interesses de indivíduos de outras espécies), que apela a uma ética dos deveres humanos em relação aos animais, considerando-os como seres capazes de sentir (ser senciente) e de Tom Regan (1983), ativista dos direitos dos animais, que sustenta a condição do sofrimento animal em analogia ao sofrimento humano.
Ao encerrarmos o cão ou gato em casa ou na varanda, privando-o de socializar com “os seus”, ou de experienciar os cinco sentidos em liberdade – olfato, paladar, visão, audição e tato- estaremos a agir corretamente?
Charles Darwin, autor de “A Origem das Espécies” (1859) foi o primeiro a enfatizar, em “A Expressão das emoções no homem e nos animais” (1872), que animais domesticados, como gatos, cães ou coelhos de estimação, compartilham certas características além da mansidão, tal como sofrimento e choro, ansiedade, tristeza, sentimentos de alegria, ternura e afeto, ódio e raiva, etc.
À época Darwin estudou os aspetos biológicos do comportamento e analisou as semelhanças encontradas entre expressões e emoções apresentadas pelo homem e alguns animais e que fazem parte do processo evolucionista.
No processo de adaptação do animal ao novo meio criado pelo Homem, Darwin identificou diversas mudanças a nível anatómico, morfológico e fisiológico, como por exemplo, alteração de comportamento (+/- infantil, +/- submisso, +/- agressivo), redução do tamanho, focinhos mais curtos, orelhas mais pequenas e descaídas, ciclos reprodutivos frequentes e menos sazonais, entre outros.
Ora, chegados aqui é bom dar a conhecer que nos lares portugueses já temos mais animais de companhia do que crianças. Um país cada vez mais “pet friendly”. As últimas estatísticas apontam para mais de metade dos lares com, pelo menos, um animal de companhia, considerando-os a grande maioria das famílias como membros e parte essencial das suas vidas. São aproximadamente, 6,7 milhões de animais, dos quais 33% são cães, 23% são gatos, 12% são peixinhos, 6% são passarinhos e 6% correspondem a outros animais, como coelhos, tartarugas, hamsters (RR,2020).
Um fenómeno social e cultural que tem servido de base a muitas dissertações sociológicas e onde se discutem e problematizam a teoria das representações sociais – uma forma de pensar a realidade e a cultura conforme sustentam Moscovici e Durkheim – e a teoria das emoções e dos afetos no seio da relação humano/pet.
Em síntese, grandes transformações socioculturais nas últimas décadas intensificaram e humanizaram a relação entre o Homem e o animal de companhia, principalmente nas economias mais avançadas. Se cães e gatos vieram trazer afetos e alegria a pessoas que vivem sós e a muitas famílias, será igualmente da maior relevância da nossa parte respeitar, cuidar e reconhecê-los como indivíduos com referências próprias e como seres sencientes que são, conforme plasmado no Estatuto Jurídico do Animal, em 2017.
«O homem não sabe mais que os outros animais; sabe menos. Eles sabem o que precisam saber. Nós não»
(Fernando Pessoa, in Aforismos e Afins. Richard Zenth. 2003)
Para saber mais:
· Lei n.º 8/2017, estabelece um estatuto jurídico dos animais, https://files.dre.pt/1s/2017/03/04500/0114501149.pdf
· Decreto-Lei n.º 82/2019: Estabelece as regras de identificação dos animais de companhia https://diariodarepublica.pt/dr/legislacao-consolidada/decreto-lei/2019-122728695
· Regan, T. (1983).”The case for animal rights”. University of California Press, Berkeley.
· Singer, P. (1975). “Animal liberation”. The New York Review of Books, New York.
Carlos Jesus
Licenciado em Sociologia. Mestre em Ecologia Humana
Email: carlos.jesus@campus.fcsh.unl.pt
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