Sociedade & Ambiente | Trabalho, Tempo livre e Liberdade

Agora que chegou o verão, sempre uma altura de algum desaceleramento das dinâmicas habituais, reflitamos sobre a evolução do trabalho e sobre a subjetividade do tempo livre, fora do trabalho, nos tempos atuais.

Ao trabalho árduo e pesado de outrora, atividade central da sociedade industrial que dominava por completo a vida do indivíduo e das famílias, seguiu-se na sociedade moderna e pós-industrial o “trabalho/emprego”, agora monitorizado e regulado por normas legais e contratuais, onde o trabalhador em x horas, em troca da sua habilidade ou competência, recebe uma remuneração.

No entanto, um processo que passou por várias fases.

A expansão da revolução industrial durante o século XVIII e XIX transformou profundamente as relações de trabalho e a forma de produção.

Para as cidades e para as novas fábricas deslocaram-se quantidades enormes de trabalhadores (rurais) sem formação e que se sujeitavam a qualquer tarefa, ficando assim à mercê de patrões que os exploravam, através de longas jornadas de trabalho, de baixos salários e em condições desumanas. O camponês e o artesão davam agora lugar ao operário.

Rapidamente o desemprego “disparou” e a disrupção social instalou-se (fome, doença, anomia), deixando populações completamente desprotegidas na cidade.

A anterior “solidariedade mecânica” fundamentada nas tradições, nas crenças e na moral deu lugar a uma “solidariedade orgânica” onde as relações são funcionais e se baseiam na interdependência gerada pela especialização do trabalho e na diferenciação individual e social (Durkheim, 1893).

Daí ser urgente a procura de soluções que defendessem os trabalhadores neste admirável mundo novo do trabalho. Uma tarefa empreendida por movimentos sociais que foram à luta pelos direitos dos trabalhadores, nomeadamente pelo limite à jornada de trabalho, por melhores salários e pela necessária proteção social.

Assim, é sempre bom ter presente que, se hoje temos bem definidas as relações entre o empregador e o empregado e as leis laborais a cumprir, e se gozamos dos mais variados apoios, tais como, salário mínimo, subsídio desemprego/doença, licença de maternidade, regime de pensões, direito a férias, etc… tal só foi possível em resultado de constantes e fortes lutas dos operários e sindicatos ao longo dos tempos.

Chegados aqui abordemos então a questão do tempo livre, depois do trabalho, que também foi fruto de tais conquistas e que é algo que hoje desvalorizamos.

Émile Durkheim (1858-1917) entendia o trabalho não só como mais um meio de sobrevivência ou um meio para manutenção de uma economia, mas também como garantia de maior integração e coesão social, esta provinda da divisão social do trabalho.

Alain Botton, defende que a expectativa de que o trabalho traga felicidade é uma novidade da sociedade pós-moderna: “Por milhares de anos, ele foi visto como algo a ser feito o mais rápido possível, e o escape da imaginação viria pelo álcool ou pela religião” (Botton, em “Prazeres e Desprazeres do Trabalho”, 2015)

Note-se que na Antiguidade em geral e em boa parte da Idade Média o tempo livre foi extremamente valorizado em contraposição a uma visão negativa do trabalho.

Os gregos acreditavam que só o ócio criativo era digno do homem livre, considerando indigna qualquer atividade física ou manual (exceto os desportos e a guerra), pois elas afastavam o homem da virtude (Aristóteles, 2009).

Já entre os romanos persistia a desvalorização do trabalho, mas passando a predominar uma conceção de tempo livre como descanso e diversão.

Visão que se manteve durante quase todo o período da Idade Média, onde o trabalho é visto como um castigo e até mesmo um testemunho da imperfeição do homem. Era valorizada a meditação, a contemplação e a exaltação do Divino.

Situação que só se viria a modificar com a desarticulação do processo feudal e com a ascensão da burguesia mercantil a partir do século XV.

Os filósofos do Renascimento entendem que o homem não deve mais ser visto apenas como um sujeito contemplativo, teórico, mas um sujeito ativo, transformador e criador. A ociosidade passa a ser considerada um mal e o trabalho uma atividade dignificante.

Já os economistas do século XVIII, entre os quais D. Ricardo e A. Smith, descobrem no trabalho toda a fonte de riqueza das sociedades humanas.

Porém, uma abordagem que a Karl Marx (1818-1883) suscitava duas questões. Se por um lado o trabalho é uma dimensão fundamental do indivíduo e que o realiza, por outro, fá-lo perder a sua autonomia, tornando-se apenas força de trabalho:

“(…) quando o trabalhador não é dono de sua capacidade de trabalhar e nem daquilo que produz, não é dono de si mesmo” (…) No modo de produção capitalista, o trabalhador não é visto como ser humano, mas como uma mercadoria, um objeto a ser consumido (Marx, em “O Capital”)

De igual modo Marx, sempre grande crítico da acumulação típica do capitalismo, antevia na relação patrões vs operários, um conflito social permanente, dado tratar-se de interesses sempre antagónicos.

Mas se é com o trabalho que o ser humano tem consciência de si e do seu valor, como também sublinhou Benjamin Franklin “o Homem dignifica-se e sente-se útil pelo trabalho”, é no seu tempo livre (fora do trabalho) e no lazer, que o Homem realmente se socializa, alcança as emoções, a felicidade e a paz interior necessária.

Se para uns a felicidade e a realização pessoal era (e é) alcançada no trabalho, outros havia (e há) que a procuravam longe dele.

O progresso económico, tecnológico e social, possibilitou melhores condições de vida e viria a permitir o direito ao descanso, o chamado “tempo livre”, uma conquista da classe operária, ocorrendo a nítida separação entre tempo de trabalho e tempo sem trabalho, este agora um “tempo orientado para a realização da pessoa com fim último” (Dumazedier,1974).

“(…) a expressão comum: “não tenho tempo”, significa mais profundamente: “não me tenho” ou “outro me possui” (SNPC,2023)

Com efeito, foi o sucesso da industrialização e os ganhos laborais conseguidos que vieram libertar “tempo pessoal” ao indivíduo, mormente a determinadas classes sociais, como tão bem ilustrou Thorstein Veblen (1857 -1929).

Sabia que, em 1816, Robert Owen (1771-1858) defendeu a ideia de que a qualidade do trabalho de um trabalhador tem relação diretamente proporcional com a qualidade de vida do mesmo? Nesse sentido preconizou a fórmula das oito horas de trabalho, oito horas para viver e oito horas de descanso…

Ora, a partir do momento em que o homem resolveu medir e quantificar “o tempo” atribuindo-lhe um valor económico, como de uma mercadoria se tratasse, rapidamente o sistema económico o absorveu e o formatou à imagem e gosto de cada sujeito, de cada consumidor.

O descanso deixa, pois, de ser visto apenas como um remédio contra a fadiga para passar a possibilitar o lazer e ócio, embora presentemente se traduza numa expressão de mercado, de puro consumo que é oferecido ao indivíduo em troca do seu tempo livre…. Afinal tempo livre e ócio não significa não fazer nada.

“As fadigas da vida moderna tornam indispensáveis o divertimento, a distração, o descanso” (Lefèbvre, 1969)

Na realidade hoje quando falamos de “tempo livre” – tempo de que se pode dispor livremente, a bel-prazer, fora das ocupações obrigatórias -, não nos referimos a imobilidade nem a um “dolce far niente”, mas sim a um novo tempo, a um momento de liberdade escolhido por si, em que o ser humano se reencontra consigo e se procura realizar. Afinal o tempo só será “livre” se realmente libertar. Tempo e liberdade implicam-se.

 

“(…) o tempo de lazer ocupa o tempo livre, invade o espaço humano, cria formas de dependência e de cumprimento de horários. Não falamos mais de descanso, mas de momentos de relaxamento, diversão e evasão, o que equivale a substituir a fadiga por mais tensão, mais tarefas, mais disciplina e mais consumo “(Alain Corbin, 2023)

Em síntese, se o trabalho é uma fonte de riqueza, de integração, de identidade e de realização, o descanso e o tempo livre, este como condição de liberdade, complementam e rejuvenescem o indivíduo, pelo que, há que saber encontrar espaço para a devida conciliação.

O famoso “time is money” corre em sentido contrário, domina-nos. Precisamos de tempo livre, tempo para sermos nós, se realmente exaltamos a liberdade.

(…) se o tempo é condição de possibilidade da liberdade humana, libertar o tempo é condição necessária para a realização pessoal” (SNPC,2023)

Carlos de Jesus

Licenciado em Sociologia. Mestre em Ecologia Humana

carlos.jesus@campus.fcsh.unl.pt

Facebook: Eu combato o Desperdício Alimentar

 

 

 

  • Diário de Odivelas - Redação

    Related Posts

    Diz…correndo… Na linha | Episódio 50

    Meus Muito Saudosos Leitores, após um período de ausência, em que estive a cumprir “luto literário” pela Nobreza, cá estamos a discorrer de novo, vendo o país a ser pasto…

    A sociedade dos “likes”, dos “emojis” e das “selfies”

     “Quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir fica convencido de que os mortais não conseguem guardar nenhum segredo. Aqueles cujos lábios calam denunciam-se com as pontas dos dedos;…

    Deixe um comentário

    O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

    Publicidade

    Polícia Judiciária deteve autor de fogos florestais na Ramada

    Polícia Judiciária deteve autor de fogos florestais na Ramada

    Diz…correndo… Na linha | Episódio 50

    Diz…correndo… Na linha | Episódio 50

    Ultimate Fight 3 na Secundária da Ramada

    Ultimate Fight 3 na Secundária da Ramada

    Dois filmes este fim de semana no Jardim da Música

    Dois filmes este fim de semana no Jardim da Música

    Odivelas recebeu competição europeia de Goalball

    Odivelas recebeu competição europeia de Goalball

    Stand Up Comedy na Casa da Juventude

    Stand Up Comedy na Casa da Juventude