Volvida mais uma campanha de recolha de bens alimentares para o Banco Alimentar conta a Fome – instituição social do 3º setor que, assente na gratuitidade, na dádiva, na partilha e no voluntariado, tem como objetivo combater desperdício alimentar e a exclusão social, “Aproveitar onde sobra para distribuir onde falta” – teçamos de seguida algumas considerações sobre o papel e motivação dos voluntários – mão-de-obra fundamental para o cumprimento de tão nobre missão – na ação do Banco Alimentar, no que diz respeito à recolha de alimentos efetuada por cidadãos voluntários, duas vezes por ano, em supermercados de todo o país.
“O voluntário é o jovem ou o adulto que, devido a seu interesse pessoal e ao seu espírito cívico, dedica parte do seu tempo, sem remuneração alguma, a diversas formas de atividades, organizadas ou não, de bem-estar social, ou outros campos…”
(Nações Unidas,1971)
Na atual economia de mercado em que vivemos, e que nos consome, que gera consumo excessivo e excedentes alimentares, temos paradoxalmente grandes franjas da população em carência alimentar que, pelos mais diversos motivos, não têm acesso a alimentos bons e seguros.
A ponte de ligação entre estas duas realidades é feita, e não só, pelo Banco Alimentar Contra a Fome, hoje uma instituição com alto capital social adquirido e que se justifica pelo nobre e reconhecido papel que cumpre em prol dos mais necessitados e que passa pelo reaproveitamento e reencaminhamento diário e gratuito de produtos alimentares produzidos em excesso ou doados e produtos que de outro modo iriam ser descartados no campo e atirados ao lixo.
Ora, falar de voluntariado é abordar uma prática tão antiga como a humanidade, que sempre existiu sob múltiplas formas dependendo da história e cultura de cada país. Recorde-se que os primeiros registos de voluntários na Europa são de grupos de bombeiros voluntários.
Em Portugal a Lei n.º 71/98, de 3 de novembro, que regula as bases do enquadramento jurídico do voluntariado, define nos artigos
De igual modo, ao abordarmos o tema do voluntariado não podemos deixar de falar em exercício de cidadania, de solidariedade e em realização pessoal. Uma expressão do seu desenvolvimento pessoal e do envolvimento do indivíduo na comunidade.
Numa sociedade caracterizada pelos processos de reflexividade e de individualização, em que os indivíduos estão mais voltados para si e para os seus próprios percursos de vida, como explicar o tempo dado ao voluntariado? Que motivações individuais levam esses cidadãos a prescindirem do que de mais valioso lhes pertence, o seu tempo livre, para dedicá-lo aos outros, assumindo por inteiro essa responsabilidade comunitária, como se de uma tarefa cívica e social se tratasse.
As suas motivações são diversas. Se do antecedente predominavam as de índole religiosa, hoje elas prendem-se com motivações pessoais e emocionais, ambientais ou culturais, muito derivadas de um crescendo da consciência social e cívica na sociedade.
Todavia e apesar dos portugueses serem conhecidos como pessoas prestáveis, tal não se reflete na prática do voluntariado. “Falta-lhe a cultura da solidariedade” sublinha Eugénio José da Cruz Fonseca, presidente da direção da Confederação Portuguesa de Voluntariado.
Em 2018 o INE apontava para uma taxa de voluntariado “formal” em Portugal de 6,4% – cerca de 700. 000 voluntários – bem abaixo da média da UE (19,3%), observando-se
as taxas mais elevadas no norte da Europa, com destaque para a Holanda (40,2%) e a Dinamarca (38,1%). Dados, no entanto, que não refletem a verdadeira realidade do nosso país, uma vez que há muito voluntariado “informal” que não é considerado para as estatísticas.
Reconhecidamente no nosso cotidiano “desperdiçamos” muito tempo com o acessório e supérfluo, perdendo por completo a noção do que realmente importa e como podemos contribuir para a mudança. Os tempos modernos deixam-nos pouco tempo para nós.
Contudo e sem nos apercebermos, todos os dias, pelo país fora, centenas ou milhares de cidadãos voluntários empenham-se e comprometem-se em grandes/pequenas ações de interesse social e comunitário, simplesmente com o intuito de ajudar o outro.
Pequenos e simples gestos como, por exemplo, é o da recolha de alimentos para o Banco Alimentar, ilustram bem a importância social e moral da prática do voluntariado para o bem comum, seja pelo próprio enriquecimento pessoal (bem-estar, trabalho em equipe, partilha, compromisso, gratidão, solidariedade e reciprocidade), seja pelo exercício puro de cidadania ativa e participativa.
“(…) o que recebemos é bem maior do que demos” (desabafo de um voluntário no final do seu turno de voluntariado).
Podemos, pois, afirmar que, e recorrendo à perspectiva maussiana sobre a dádiva, que ser voluntário é dar, receber e retribuir (Mauss, 1950).
Hoje, mais do que nunca, partilhar e compartilhar é uma necessidade, é um dever, não mais um ato de caridade. Uma forma de cultura que põe as pessoas em primeiro lugar.
A defesa do bem comum e do princípio da solidariedade e da tolerância são valores relevantes quando abordamos a prática do voluntariado.
Cada vez mais a sociedade precisa de cidadãos ativos, informados e responsáveis, cidadãos que estejam dispostos e sejam capazes de assumir responsabilidade por si próprios, pelas suas comunidades e contribuir assim para uma sociedade sustentável e mais justa.
Afinal, um mundo diferente e melhor não pode ser construído por pessoas indiferentes e acomodadas.
A todos os que fazem o bem sem olhar a quem, bem hajam!
Carlos Jesus
Licenciado em Sociologia. Mestre em Ecologia Humana
Email: carlos.jesus@campus.fcsh.unl.pt
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